quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Carta


Para mim, acordar sem um abraço acompanhado de um sorriso e um bom dia, assim como dormir sem um beijo, só acontece quando não existe nada além de sexo. Acho que por isso eu não fazia, nós tínhamos aquela mania de colocar aspas quando escrevíamos alguma coisa sobre o “nosso relacionamento”.
Desde que meu pai morreu, minha mãe ficou muito reservada. Se ela não tivesse mudado tanto, tenho certeza de que aceitaria que eu apresentasse o Rômulo como meu namorado, até porque a Cleonice, mãe dele, era amiga de infância da minha. Tudo bem. Para nenhum de nós dois havia algo mais forte do que a falta que sentíamos do meu pai que, apesar de ser muito conservador, enchia a casa com música e risadas. Não fosse o câncer, ainda teríamos toda aquela alegria, mas ele também não deixaria que eu entrasse em casa com o Rômulo, por isso eu não culpo a minha mãe, o meu drama não seria diferente.
Nos conhecemos quando crianças, devido a amizade de nossas mães. Quando adolescentes, pudemos notar nos gestos um do outro que sentíamos a mesma coisa, mas só conseguimos, de fato, nos relacionar quando já estávamos com quase vinte anos. Claro que o meu desejo era contar para todo mundo o que estava acontecendo. O pior era ter que me esconder como se eu estivesse cometendo algum crime. Decidimos não levar aquela história tão a sério, já que não poderíamos mesmo ver aquilo como um namoro, por isso as aspas na palavra relacionamento.
Cada minuto que passamos juntos valeu por cada lágrima que eu derramei por não poder estar sempre ao lado dele. A nossa cumplicidade era imensa, dava sempre a impressão daqueles clichês de comédia romântica, mas mesmo com tudo isso, insistíamos em dizer que não tínhamos nada além da cama, assim, parecia que o sofrimento seria menor. Grande ilusão! Nós dois tínhamos a mesma vontade, os mesmos desejos e o mesmo sentimento. Mascaramos tudo porque nada dependia de nós.
            Não vou dedicar esta carta a ninguém, talvez minha mãe leia, talvez o Rômulo ou talvez só a polícia, não importa. Passei a vida inteira com uma dúvida me consumindo e foi isso que me impediu de ser feliz e, para que as pessoas que amo não tenham esse mesmo sentimento, está tudo esclarecido aqui. Já disse que não culpo a minha mãe e espero que ninguém o faça, ela apenas manteve, de certa forma, o meu pai presente entre nós. Culpem toda a sociedade. Minha mãe não ficaria feliz se eu resolvesse assumir este romance, mas a dor será muito maior por não me ter ao lado dela, esse será o seu castigo não merecido. Vocês que ficarão com os olhos arregalados ao saber disso tudo são os verdadeiros culpados. Saibam que uma vida está acabando assim porque todos vocês ficariam escandalizados ao saber que o filho do Major Rodrigo se apaixonou, um dia, pelo filho da Cleonice.

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Passarinho Verde


Certo dia, o velhinho que trabalhava no rancho da minha avó me disse que, se pudesse escolher, ele seria um passarinho verde. João Milho de Pastos explicou:

- Quando alguém descobre um segredo, diz que foi um passarinho verde que contou. Quando está feliz por nada é porque viu um passarinho verde.

Adivinha quem me soprou ao ouvido que eu deveria contar-lhe esta historinha?

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Um Forte Abraço


Aquele abraço durou quase dois minutos e Amélia não perguntou nada, não falou nada, e não diminuiu a força em seus braços enquanto envolviam o namorado que chegou abalado em casa. Sempre que ele precisou, foi ali que buscou conforto e nunca saiu de um abraço sem estar com o coração mais tranquilo do que havia entrado nele.
Os dois conheceram-se na escola, Ensino Médio. Amélia não era bonita, mas tinha um jeito de lidar com as pessoas que fazia dela uma das alunas mais populares dali, embora nunca tenha buscado isso. Todas queriam ser suas amigas e ela nunca julgava ninguém sem antes conhecer. Conversou com Márcia por alguns dias e pode sentir a maldade com que ela falava dos outros. Afastou-se imediatamente. Quando ficava com um ex de uma amiga, era sempre perdoada, ninguém conseguia sequer ver maldade naquele ato. Os guris que não a conheciam, nem a notavam durante o encontro das escolas nos jogos municipais. As gurias não a olhavam de cara feia, pois sua aparência não era de causar inveja. Juliano era o melhor amigo de Amélia que era a melhor amiga de muitos colegas e amigos de amigos a quem era apresentada durante a adolescência. Era impossível não se apaixonar por ela e não se sentir a vontade para contar todas as confidências e esperar pelos conselhos. Ela não sabia fazer isso, mas ninguém se importava, um olhar e um abraço dispensavam qualquer palavra. Estudavam juntos desde o primeiro ano, mas só na metade do segundo é que ele teve coragem de contar seu maior segredo que ela, é claro, já sabia. Começaram, então, a namorar. Viam-se todos os dias na escola e passavam os fins de semana grudados. Gostavam tanto um do outro e gostavam tanto da companhia um do outro que a mãe dele e alguns colegas diziam que não ficariam juntos por muito tempo.
Erraram. Logo depois da formatura do Ensino Médio, Juliano recebeu a notícia da aprovação no vestibular de medicina. Amélia ainda demorou mais um ano para entrar na faculdade. Claro que todo mundo já pensou nisso. Sim, o nome dela era por causa da música. Janice dizia que sua filha não ia se importar em ter um sapato bonito e um corte de cabelo da moda. Seria inteligente e independente. Quando casasse, seu marido não precisaria ajudar a lavar os lençóis sujos. Também errou. Amélia não casou, mas foi morar com Juliano quando, no quarto semestre, a medicina começou a lhe tirar todo o tempo que tinha pra conciliar a limpeza do apartamento, o trabalho e os estudos. Ela trabalhava só pela manhã e o curso de pedagogia a distância não exigia tanta dedicação, então conseguia sempre deixar o apartamento em ordem. Fazia um escândalo toda vez que encontrava uma cueca no chão do banheiro, porque era mesmo uma mulher de verdade e embora muito compreensiva, exigia que ele a ajudasse.
Brigavam quase todos os dias por alguma coisa boba, mas nunca dormiram sem um beijo de boa noite e um sorriso que representava o já passou. Não diziam eu te amo todas as noites, mas não passavam um dia sem deixar um bilhete. Um hábito que adquiriram no início do namoro, quando mandavam bilhetinhos com palavras apaixonadas escondidos das professoras. Um sabia tudo o que acontecia na vida do outro, sinceridade era a única coisa que os dois exigiam. Quando a mãe de Amélia morreu, foi no abraço dele que conseguiu parar de chorar por alguns instantes. Desde que eram amigos, ela sempre disse que não conhecia outra coisa que a deixasse tão segura quanto estar ali, tão perto de Juliano.
            Foi naquele abraço que ganhou quando chegou em casa, por estar tão perto de Amélia, que ele conseguiu parar de chorar um pouco. E ali mesmo, disse à namorada que não queria filhos, pois não sabia cuidar de uma criança. Estudou seis anos durante a faculdade, além da residência. Um mês depois de acabá-la, fez sua primeira cirurgia. Logo em uma criança. Não foi ele quem deu a notícia para os pais. Não foram os pais que pensaram em largar tudo o que tinham construído até agora. Não foram os pais os primeiros a serem encaminhados à terapia. Juliano não quis entrar na sala da psicóloga do hospital onde trabalhava, foi direto para casa. Precisava da segurança daquele abraço. Amélia não sabia dar conselhos, mas aquele olhar e aquele abraço, mais uma vez, dispensaram qualquer palavra.



quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Coisas para Guardar em uma Caixinha de Música


Sempre fiquei encantada vendo aquela bailarina girar ao som da música tão suave que a embalava. Quando era criança, eu chegava à casa da minha avó, dava um abraço apressado e ia para o quarto abrir a caixinha para ver a boneca. Passava muito tempo ali dançando com ela. Dava corda mais uma vez, dançava mais um pouco e assim eu ia fazendo até que a vontade de correr para o colo da minha avó me fazia desligar um pouco daquela magia. Antes de sair, eu colocava a bailarina para dormir, queria que ela tivesse um sonho bem bonito para dançar lindamente para mim no outro dia. Antes que ela pegasse no sono eu dava mais uma corda para que, assim que eu a acordasse, ela pudesse começar logo a sua apresentação.  
Eu estava na quarta série quando a minha tia me deu de presente o primeiro livro que li, O Mágico de Oz. Decidi que a partir de então, a boneca da caixinha se chamaria Dorothy, pois imaginei que ela devia sonhar tanto quanto a menina do livro. As duas foram muito importantes na formação da adulta que sou hoje. A Dorothy do livro me ensinou a não desistir de nada que eu queira, sempre há um jeito de alcançar se não desistirmos. A Dorothy bailarina, que nunca me contava nada do que estava sentindo, me mostrou que algumas coisas devem ficar guardadas em uma caixinha, acompanhadas de uma boa música.
Construí minha caixa e a primeira coisa que guardei lá foi a Dorothy que tirei da caixinha da minha avó depois que estragou e coloquei junto à lembrança que tenho dela, a verdadeira dona da bailarina. A que tenho mais nítida e que foi a que eu escolhi pra deixar lá, foi a do dia em que fizemos o piquenique no descampado perto do rio. Ela fez questão de levar café passado em uma garrafinha, porque comer os bolos dela sem sentir aquele cheirinho seria muito injusto e eu reclamaria. Enquanto comia todas aquelas coisas boas sem pensar em quantas calorias estava ganhando – crianças são muito inteligentes para se preocupar com isso – ela me contava algumas histórias. Uma delas eu decidi guardar também, e por isso vou contá-la em breve. Comemos, tomamos café e conversamos até o anoitecer. Ajudei-a a recolher a toalha xadrez de vermelho e branco, coloquei as cascas das maçãs em uma sacola e fomos de mãos dadas para casa. Claro que não para a minha, dormi com ela naquela noite.  
Antes de contar a história que eu escolhi – estou com medo de esquecer algum detalhe – vou guardar a música. Eu achei graça quando comecei a perceber que todas as vezes que meu irmão brigava com a namorada, trancava a porta do quarto e ficava escutando Legião Urbana ou Engenheiros do Hawaii. Se ele já estava triste pela situação, por que escutava músicas que o deixavam ainda mais triste? Até que, quando eu tinha sete anos, tive que me separar do grande amor da minha vida. É verdade, com sete anos! Então eu pensei: meu irmão já tem 19 anos, deve saber o que está fazendo. Decidi pegar uma das fitas dele, me trancar no quarto e desde então, fiquei durante meses escutando quase todos os dias a canção que eu vou guardar pra sempre: Giz.
Eu disse que era o amor da minha vida, pois até hoje, mais de vinte anos depois, quando a escuto, lembro dele. Começamos o nosso namoro aos três anos, não sei bem como foi o início, mas antes mesmo de sabermos falar direito, segundo o que minha mãe conta, ele batia lá em casa e saíamos os dois de mãos dadas para passear. Veja bem que era um namoro sério, até com o consentimento da família. Nessa mesma época ele guardava tijolos no fundo do pátio e dizia que era para construir a nossa casa quando fôssemos adultos. Passamos todas as tardes juntos até os sete anos de idade quando ele foi morar longe da nossa pequena cidade. Continuamos nosso relacionamento por cartas e visitas, tanto minhas quanto dele, duas ou três vezes por ano. Quando tínhamos treze anos eu dei o meu primeiro beijo que também era o primeiro dele. Claro que foi um desastre, mas ele vai ficar bem guardado na caixinha, pois lembro perfeitamente do que senti naquele momento. Aquele foi nosso último fim de semana de namoro. É muito difícil guardar pessoas na caixinha de música, pois isso só acontece quando sei que elas não farão mais parte da minha vida, ficarão somente na memória. Mas como ontem eu recebi a notícia de que ele vai casar no próximo mês, está mais do que na hora de deixá-lo na companhia da minha bailarina.

          Desde que comecei a construir a caixinha, estou pensando na história da minha avó, mas não consigo lembrar os detalhes. Sei a parte mais importante e que precisa ser guardada lá. Era uma vez uma menina que prendia os cabelos com duas fitas, usava um vestido no comprimento do joelho e era dona do sorriso mais lindo que já se viu – eu sempre imaginava a Dorothy do livro quando ela descrevia a menina. Depois que eu a enxergava, aconteciam muitas coisas na história que eu não lembro bem, mas o que não vai sair da minha memória é que ela sempre dava um jeito de realizar seus sonhos. Ela sonhava tanto com uma estrela que um dia alcançou uma e, segurando firme com apenas uma das mãos, passeou por um lugar lindo que possuía flores de todas as cores. Essa foi a recompensa por não ter desistido do que parecia impossível. Essas coisas ficarão guardadas pra sempre, imexíveis. Agora preciso dar corda na minha caixinha de música, deixar a boneca descansar e sair em busca da minha estrela. Não devo demorar.



Como Eu Conto a Crônica


Indo para o trabalho hoje à tarde, sentei-me na mesma poltrona de sempre. Eis que um senhor sentou ao meu lado no ônibus e me perguntou o que era preciso para escrever um poema. Fiquei alguns segundos pensando o que responder, já que a pergunta que perambulava na minha cabeça era outra muito mais difícil. Como ele sabia que eu escrevia? Respondi apenas inspiração. Mas sobre aquela segunda pergunta, a minha, eu não sabia o que pensar. Publiquei pouca coisa, mas nada acompanhado de foto. Aliás, escrevi pouca coisa, quase nada de poesia.  Aí lembrei do que uma amiga havia me falado alguns dias antes, que quando estamos felizes, normalmente por ter conhecido alguém especial, fica muito mais fácil de escrever. É como sentar à frente de um computador e esperar que venham as palavras. Juntando os dois fatos, deduzi que aquele senhor percebeu que eu estava especialmente feliz e deve ter me achado com cara de poeta. Agora estou aqui escrevendo sobre o ocorrido. Estou tão inspirada – não tanto a ponto de fazer um poema – que pensei em escrever um conto, mas o que aconteceu foi, de fato, tão interessante que decidi pela crônica.
Os estudantes, desde o ensino fundamental, são intimados a criar textos sobre suas férias ou sobre a última notícia do jornal. Não conseguem escrever, pois não tem a “tal inspiração”. O que os professores não se dão conta é que deveriam aproveitar que os adolescentes estão sempre apaixonados ou desapaixonados e aguçar o gosto pela escrita fazendo desses sentimentos uma ferramenta. Mas como todos os aspectos da educação no Brasil, as ideias dos professores também estão precárias, o que é completamente compreensível para mim, futura professora de Língua Portuguesa e assustada com o ensino público (ultimamente com o privado também). Facilitaria se fossem sugeridos, pelo menos, três temas e mais um que desse ao aluno liberdade de escrever sobre o assunto de sua preferência, pois não sabemos se naquele mesmo dia ele não viu um “passarinho verde” que o trouxe inspiração ou se não levou um “chute no bumbum” e está precisando escrever um pouco para “afogar as mágoas”.
Conheço uma pessoa que – acreditem – ganha até dinheiro publicando livros, que costuma dizer que um autor precisa de algo que o deixe triste, ou até depressivo, para ter assunto suficiente para fazer da escrita o seu trabalho. Do contrário, cria um texto aqui, outro ali, pensando sempre em coisas banais, fazendo com que o leitor ache tudo muito parecido. Como eu já disse, ele é um “escritor de verdade”, sabe o que está dizendo. E agora, quem está certo, o triste e experiente autor ou eu que estou aqui super feliz por ter conhecido uma pessoa que me trouxe inspiração para escrever esta pequena crônica?
As minhas notas de redações na escola eram sempre baixas porque não chegavam às vinte linhas solicitadas pela professora. O problema é que sempre que começo a escrever – sim, é assim até hoje – eu já sei como será o final e a ansiedade de contar essa parte me impede de desenvolver mais as ideias. Então, vamos logo ao ponto onde eu queria chegar, aproveitando para responder a pergunta do parágrafo anterior. O que faz deste texto uma crônica e não um conto? Agora já são duas perguntas para responder e eu não vou fazê-lo. Como estudante de letras, vou treinar para a minha futura profissão tentando instigar o pensamento do leitor. A principal característica que difere a crônica do conto é que um é real e o outro é ficcional, certo? Aquela primeira pergunta, por exemplo, não me foi feita, eu não conheci ninguém nesta semana e as vezes escrevo quando estou triste e as vezes quando estou feliz e nem por isso podemos dizer que este texto é um conto, mesmo que muita coisa nele seja ficção. Então, colegas professores, paremos um pouco de exigir tanta classificação e tentemos despertar nos alunos o gosto pela leitura. Estudar os gêneros literários é sim, muito importante, mas o saber escrever só acontece depois de muita leitura. De nada adianta classificar e não conseguir ler e expressar-se.


Agosto/2012

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Um Breve Caso Gramático

Um ponto final não cairia bem àquela história, não na parte em que supostamente acabou. Estava indo tudo muito bem até aparecer o ponto de interrogação. E era uma pergunta que vinha sem gabarito do tipo daquelas respostas pessoais. Aí que a gente se dá conta que o pronome pessoal pode significar três pessoas diferentes na mesma frase.
Vou contar esta história direito, aliás, vou contar e as interpretações podem ser mil. Essa maldita interpretação! A pessoa nunca entende o que o autor quer dizer. Pensando bem, aí é que está a genialidade da questão. Poder entender o que nos faz sentir melhor. Pronto. Vou contar do meu jeito e cada um entende do seu. Quando ela começou, eu já sabia o final (vocês saberão só nos últimos parágrafos), mas nem imaginava tudo que aconteceria até chegar lá.
Dois sujeitos resolveram entrar no mesmo texto, que a princípio, não deveria virar uma história, mas com essa mania de escritores, as frases foram aumentando, aumentando... tudo por conta dos adjetivos, eles que expressam qualidade. Ta. Nem sempre, mas todos foram pra trazer alguma coisa boa. Quando ele era usado pra criticar, vinha logo a solução. Ainda assim, os que prevaleceram sempre foram os com aquela primeira denotação, o que fez com que a história ficasse cada vez mais bonita, inteligente, criativa e acima de tudo, divertida.
Entrou no enredo, então, o advérbio de intensidade, mas ele não conseguiu ser mais forte do que o de tempo porque há um grande abismo entre os tempos verbais que usamos na fala e o tempo que rege as orações descoordenadas que realmente sentimos. A nova ortografia que parecia ter unificado tudo, era fajuta. No fim, um fala o português brasileiro, outro o europeu. Entendem-se muito bem, mas existem algumas diferenças que ninguém vai conseguir regrar. Por exemplo, o uso do sujeito composto. Um não concorda, mas o outro não consegue escrever sequer um pequeno texto usando o sujeito simples. O problema é que um deles precisa ficar oculto e esse nunca está satisfeito. Todo mundo sabe quem ele é, é sempre óbvio, mas existe alguém que não entende da sintaxe e, por isso, consegue levar a história adiante.
Futuro, presente e passado estão diretamente ligados. A maioria das pessoas dá mais importância às normas do que à semântica e não perde o costume de engessar tudo o que fala, sente e vive. Tem medo do diferente. Sempre achei que o verbo seria era conjugado no futuro do pretérito porque pra ele acontecer de verdade depende de deixar pra trás o que ele já foi. Eu seria bem melhor se esquecesse de viver o passado.
Regra básica da sintaxe, dois pontos, não há vírgula no mundo que consiga separar o sujeito do predicado, até porque não é certo tentar fazê-lo. Depois de engolir uma gramática inteira eu aprendi não só a aceitar isso, mas a concordar que nesse caso não há liberdade, algumas coisas não podem fugir da norma culta. Reticências não cabem aqui, são três sinais em um só e o que vem depois não pode ser mudado. Vou usar uma vírgula. Assim, a frase continua de onde parou, a menos que seja interrompida por uma oração coordenada sindética adversativa,
Agosto/2012

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Sujeito Indefinido


E se tudo que você passou anos procurando você encontrar um dia, de repente, em uma única pessoa? Luiza chegou bagunçando de cara a vida de Heitor. Ele tinha as suas certezas, não dependia de ninguém, não perguntava se era melhor colocar o casaco preto ou o cinza, não precisava nem de opinião.
Heitor tinha acabado de sair de um relacionamento de sete anos e seu único objetivo agora, era conhecer o maior número de pessoas sem se envolver com ninguém. Sentiu vontade de dançar com quem ele não conhecia embalado pelas músicas que não costumava ouvir. Um show de pagode. Colocou o casaco cinza, o tênis que estava guardado porque não gostava de usar e entrou naquele lugar onde jamais havia pensado em frequentar. Dançou com três mulheres, mas parou antes que terminassem as músicas, não estava no mesmo compasso de nenhuma delas. Com a segunda ele bem que tentou, não acertaram o tal do compasso, mas estavam no mesmo ritmo. Uma pisada no pé. Não deu para continuar a dança. Viu, de longe, a menina que parecia saber todos os passos e continuou ali, da mesma distância, pois tinha certeza que não conseguiria acompanhá-la. Luiza notou o seu olhar e sem perguntar entrou na vida de Heitor. Ele não teve tempo de lembrar do seu objetivo inicial e alguns dias depois não quis mesmo lembrar.
Os dois foram se conhecendo aos poucos e cada dia ela mostrava que não era aquela com quem ele sempre sonhou. Ela o fazia sem perceber e ele, sem querer, aceitava cada uma daquelas diferenças. Comeram sushi, mas só depois descobriram que nenhum dos dois gostava daquela comida sem gosto. Heitor não achava nenhuma mulher bonita sem maquiagem. Ela tinha um olhar que dispensava a sombra e a máscara. Luiza não gostava de nenhum sapato masculino. Nele caia bem. Ele começou a ouvir pagode e ela a decidir que casaco ele usaria. Ele fazia contabilidade e ela oficina de criação literária, um mês depois, Luiza fazia algumas contas para Heitor e ele dava opinião nos textos sempre mal escritos por ela. Tudo o que ele buscava em alguém passou a ser o que encontrava nela.
          Foi então que ela disse que conheceu um sujeito que, com certeza, daria a ela toda a felicidade que desejou. Heitor decidiu se afastar para que Luiza pudesse viver o que sempre sonhou. Não deu chance para ela mostrar que, com artigo definido ou indefinido, o sujeito era sempre ele.

A Métrica do Tempo


Eu não sei das métricas nem das rimas
Devo, então, escrever sobre o amor.
Não. Não há espaço para ele
Não há tempo.
Há filhos sem berço
Embalados pelo frio nas lixeiras.
Só quem não tem é capaz de sentir,
Estéreis choram.
Ninguém olha para o lado
Ninguém enxerga.
Não damos mais esmola,
Não sabemos mais quem precisa
Ou quem ocupa um lugar alheio no sinal.
Aliás, não damos bom dia,
Não há tempo.
Avise os desavisados
Que vistam a camisa do seu time em vista da vitória!
Desinformados ou distraídos,
Torçam por vocês
Para que não virem os porcos do Haiti.
Mas que seja agora!
Não há mais tempo.
2010

Marcas


Naquela noite, a tristeza o manteve acordado. Ver sua esposa com os olhos cerrados, sem responder aos seus carinhos. Era inaceitável que a vida tivesse acabado primeiro para ela. A morte de Rosa Maria, há dois meses, foi o que tornou o quarto a nova morada de Ernesto Carmesin. Agora o velho sai de lá uma vez por semana para tomar um banho que leva sempre muito tempo. As refeições não fazem falta. Come, no quarto, porque a filha insiste. Durante a vida inteira, o número de visitas a qualquer médico deve ter totalizado cinco, no máximo. Agora mesmo é que ele não aceitava visita de nenhum especialista. A morte de Rosa Maria, que noite triste foi aquela. Aliás, que dias tristes têm sido todos sem a sua companhia.
Olhou-se no espelho e teve a impressão de que o tempo havia passado rápido demais. Cada uma daquelas marcas em seu rosto, parecia marcar também um momento de sua vida. E as lembranças vieram-lhe como uma enxurrada. O último natal reuniu todos os filhos na mesa grande da sala, além dos doze netos e do bisneto. Recém chegado, filho da neta mais velha, era para Pedro que se voltavam as atenções na noite do natal de 1997. A Vó Ninha, como era carinhosamente chamada Rosa Maria por toda a família, nunca comprava presentes, passava o ano inteiro confeccionando o que iria para o saco do Papai Noel que era pendurado na lareira. Para cada um era feito um presente diferente, os únicos iguais eram os das netas gêmeas. Uma boneca de pano amarela para Julia e uma vermelha para Joana. Ernesto tinha sempre uma criança no colo. O colo do Vô Neneco era o melhor de todos, dizia Luíza que mesmo com dezessete anos voltava a ser criança com os carinhos do avô. E essa foi a última vez que viu toda a família reunida.
Já havia passado tanto tempo da morte de Antônio, que Ernesto esqueceu que faltou alguém naquela mesa. Não sofreu como Rosa Maria no dia em que recebeu a notícia do atropelamento de seu filho de apenas doze anos. Lembrou-se disso subitamente e agora sim, veio-lhe uma sensação de perda. Sentiu-se sozinho e culpado por não ter chorado pela morte do filho. A nitidez com que revivia aquele momento era impressionante. Abraçou a esposa que chorava desesperadamente. Ajudou-a a ir até o quarto e colocou-a na cama de onde não conseguiu levantar-se durante muitas horas. Ernesto contou aos filhos e o desespero da mãe viu-se também nos olhos daquelas crianças. Agora já era tarde para sofrer por isso e, já era tarde para se arrepender pelas faltas que cometeu antes do enfarte que sofreu um ano antes do nascimento da sua primeira neta. Foi o medo da morte que mudou sua vida. Não era antes um homem ruim, mas sua severidade criou nos filhos um receio que os mantinha sempre um pouco distantes do pai.
Talvez seu maior erro tenha sido forçar Rosa Maria a casar-se com ele. Brigaram incessantemente durante um ano. O nascimento do primeiro filho fez com que a mãe se calasse diante às grosserias do marido. Além de dedicar o seu tempo, depositava também toda a sua preocupação nos cuidados com Antônio. O convívio entre os dois tornou-se tranquilo, mas estava longe de ser uma relação de afeto. Ainda agora, diante do espelho, achava justo ter forçado aquele casamento. Não havia outra mulher que despertasse nele maior interesse. Naquela época, tinha dinheiro para manter uma casa com conforto e, afinal, nas últimas décadas conseguiu dar a ela a dedicação merecida.
Uma súbita dor. Respirou fundo, levou as duas mãos ao peito e fechou os olhos. Lembrou-se da infância e pode ver que a maneira rude com que o pai e a mãe o criaram foi o que o tornou tão reservado. Não abriu mão de nenhuma decisão, não dedicou seu tempo e, por muitos anos, não demonstrou sinal de afeto por ninguém. Na verdade, não sabia como fazê-lo. Atentou que podia ter prejudicado seus filhos com o mesmo erro. Mas não, a mãe deu-lhes tudo o que era necessário. Teve de deitar-se na cama. A convicção de ter podido mudar nos últimos anos amenizou a dor. Precisou fechar os olhos mais uma vez. A respiração está ficando cada vez mais lenta.
2009

Murphy


Chegou em casa mais tarde do que de costume e viu que estava sem as chaves. Lei de Murphy. Todos estavam dormindo. A dor nos rins aumentava cada vez mais. Tocou a campainha duas vezes e nada. Desabou a chuva. Sem bateria no celular, teve que caminhar até um telefone público. A irmã só resmungou um “está aberto”. Entrando, percebeu que aquela dor que sentira era apenas reflexo da forte ligação que tinha com Ana que encontrava-se sentada no chão, ao lado do telefone, com os joelhos juntos ao peito. Sabia exatamente o que ela sentia. Em suas devidas proporções, sempre sabia. Aos gritos acordou os pais, pois a chave do carro não estava no lugar. Não dava tempo de esperar por uma ambulância, a dor era quase insuportável. O pai, apenas pelo fato de saber que não o deixariam mais dormir, carregou Ana até o carro, sem muito cuidado, e dirigiu até o hospital. Vitória segurou a mão da irmã por todo o caminho, sem ouvir choro, nem palavra alguma. Não era necessário. Ela sabia o que Ana sentia.
O sol ainda nem havia aparecido quando deixou o hospital. Já estava a par do estado da irmã: uma cirurgia simples para remover um cálculo renal. Já na frente do escritório onde trabalhava, aconteceu aquela cena típica de um dia de azar. Um ônibus passou em uma poça d’água, sujando de barro sua roupa. Era inacreditável que no outro dia, tudo ainda desse errado. Lei de Murphy, lembrou.
Sua carta de demissão estava pronta em cima da mesa. Sorriu irônica. Pegou-a e sem falar com ninguém, saiu do prédio. Freada brusca. Deitada ali no chão, ao mesmo tempo em que o médico discava para lhe contar da complicação que ocorrera na cirurgia da irmã, Vitória perdeu os sentidos e Ana também.
2009 

Leitura x Cultura


Hipérbato, anástrofe, prolépse, sínquise, assíndeto, anacoluto. É desnecessário que se conheça, em detalhes, a sintaxe para ser um bom leitor. Um texto, independentemente do gênero, não transmite somente compreensão. Mais do que isso, é capaz de despertar sentimento.
Parece que cada vez mais, os textos pobres em conteúdo, são procurados. Os livros mais vendidos, em destaque nas livrarias, os tão conhecidos best-sellers, nem sempre são precários nas suas histórias, mas não é esse o fator que faz com que eles se tornem tão populares. Basta estar na vitrine para se tornar livro de cabeceira, e o seu leitor, instantaneamente, tornar-se culto. 
Por falar nisso, na época em que O Pequeno Príncipe foi indicado como livro de cabeceira por várias misses, será que foi realmente lido? Pode até ser que sim, mas arrisco afirmar que a intertextualidade, tão rica na obra, não foi sequer reparada. Enquanto algumas obras são consideradas boas por serem populares, outras, como essa, tornam-se ruins pelo mesmo motivo, enquanto as leituras deveriam ser escolhidas por quem o faz sem a influência de outras opiniões. Afinal, não é para isso que servem as boas críticas, é o objetivo, apenas, de quem lucra com as vendas dos livros.
              Cultura ou não, o importante é que se leia, mas se é para comprar livros de vitrine, que seja o Harry Potter, que instiga divagações. Entretanto, vale a pena dar uma olhada mais no fundo da loja e começar as compras pelos autores clássicos, sem deixar de colocar na sacola um grande contista.
2009