quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Silêncio no Jardim



Me dá um medo incrível toda vez que percebo ele me olhando. Eu não sei o que passa naquela mente enquanto os olhos me seguem e mudam até o brilho dependendo do que eu faço. E se meu olhar cruza, sem querer, o dele, ele sorri.
Há pouco mais de cinco anos Moisés está na clínica. Ninguém sabe ao certo o que aconteceu, mas quando sua mãe o trouxe disse apenas que ele havia perdido a noiva em um acidente aéreo em 2007. Teve a companhia da família nos primeiros meses, pelo menos, uma vez por semana e conforme o tempo ia passando, crescia o intervalo entre as visitas. No fim do ano passado tentei contato com os pais, mas parece que não moram mais em Porto Alegre.
Trabalho na Santa Cecília desde que me formei em terapia ocupacional, fora o estágio obrigatório da faculdade que realizei aqui também. Foi nesse período que pude ter certeza da área que eu queria seguir e assim que peguei o certificado de conclusão do meu curso, tirei uma cópia pra anexar aos meus documentos na clínica. Fui chamada em dezessete dias. Jamais senti medo de paciente algum. Jamais pedi pra que algum colega me substituísse em tarefa nenhuma. Eu adoro esse lugar e adoro o meu trabalho. Mas o Moisés me transmite algo estranho, nem eu mesma tenho certeza quando eu digo que é medo. Não é isso que sinto, acho que tenho medo de significar algo pra ele. Aquele homem de trinta e sete anos, não fala desde o dia do acidente. Pelo menos é o que consta na ficha.
Um dia ele falou. Falou uma única palavra, mas falou e ninguém acreditou quando contei. Ele segurou minha mão e disse Mariana, acredito que seja o nome da noiva, mas como não consigo encontrar a família, até hoje estou sem informação alguma sobre o Moisés. Desde esse dia ele me dá os tais sorrisos que mencionei e o meu profissionalismo me impede de sorrir de volta. Outra noite, sonhei que estava sentada ao lado dele no jardim da Santa Cecília e que ele me contava toda a sua história. Ele disse que morreu em um acidente há alguns anos e que não sabe por que eu consigo enxergá-lo, já que ninguém o vê ou o escuta. Disse que tentou falar com várias pessoas, mas ninguém o entendia. Falou para a mãe que seu amor, ou seja, sua vida acabou naquele dia, mas amor era uma palavra que ela não conhecia, o que cortou qualquer possibilidade de comunicação entre eles. Dali em diante, não disse mais nada até que encontrou a única pessoa que entendia o significado da morte pelo diagnóstico que ele mesmo deu.
De tanto ver filmes e novelas, pensei em muitas coisas quando acordei, como se, talvez, eu pudesse mesmo falar com alguém que não está aqui de fato. Assim que cheguei à clínica, fui olhar os arquivos. Sim, estava lá o nome dele e não constava a palavra óbito nos registros. E mais uma vez o meu profissionalismo que, às vezes, vai de encontro ao que eu sinto, me impediu de acreditar no sonho. E o Moisés continua lá, a me sorrir como que na esperança de que um dia eu realmente sente ao seu lado no jardim.