Me dá um medo incrível toda vez que percebo
ele me olhando. Eu não sei o que passa naquela mente enquanto os olhos me
seguem e mudam até o brilho dependendo do que eu faço. E se meu olhar cruza,
sem querer, o dele, ele sorri.
Há pouco mais de cinco anos Moisés
está na clínica. Ninguém sabe ao certo o que aconteceu, mas quando sua mãe o
trouxe disse apenas que ele havia perdido a noiva em um acidente aéreo em 2007.
Teve a companhia da família nos primeiros meses, pelo menos, uma vez por semana
e conforme o tempo ia passando, crescia o intervalo entre as visitas. No fim do
ano passado tentei contato com os pais, mas parece que não moram mais em Porto
Alegre.
Trabalho na Santa Cecília desde que
me formei em terapia ocupacional, fora o estágio obrigatório da faculdade que
realizei aqui também. Foi nesse período que pude ter certeza da área que eu
queria seguir e assim que peguei o certificado de conclusão do meu curso, tirei
uma cópia pra anexar aos meus documentos na clínica. Fui chamada em dezessete
dias. Jamais senti medo de paciente algum. Jamais pedi pra que algum colega me
substituísse em tarefa nenhuma. Eu adoro esse lugar e adoro o meu trabalho. Mas
o Moisés me transmite algo estranho, nem eu mesma tenho certeza quando eu digo
que é medo. Não é isso que sinto, acho que tenho medo de significar algo pra
ele. Aquele homem de trinta e sete anos, não fala desde o dia do acidente. Pelo
menos é o que consta na ficha.
Um dia ele falou. Falou uma única
palavra, mas falou e ninguém acreditou quando contei. Ele segurou minha mão e disse
Mariana, acredito que seja o nome da
noiva, mas como não consigo encontrar a família, até hoje estou sem informação
alguma sobre o Moisés. Desde esse dia ele me dá os tais sorrisos que mencionei
e o meu profissionalismo me impede de sorrir de volta. Outra noite, sonhei que
estava sentada ao lado dele no jardim da Santa Cecília e que ele me contava
toda a sua história. Ele disse que morreu em um acidente há alguns anos e que
não sabe por que eu consigo enxergá-lo, já que ninguém o vê ou o escuta. Disse
que tentou falar com várias pessoas, mas ninguém o entendia. Falou para a mãe
que seu amor, ou seja, sua vida acabou naquele dia, mas amor era uma palavra
que ela não conhecia, o que cortou qualquer possibilidade de comunicação entre
eles. Dali em diante, não disse mais nada até que encontrou a única pessoa que
entendia o significado da morte pelo diagnóstico que ele mesmo deu.
De tanto ver filmes e novelas, pensei
em muitas coisas quando acordei, como se, talvez, eu pudesse mesmo falar com
alguém que não está aqui de fato. Assim que cheguei à clínica, fui olhar os arquivos.
Sim, estava lá o nome dele e não constava a palavra óbito nos registros. E mais
uma vez o meu profissionalismo que, às vezes, vai de encontro ao que eu sinto,
me impediu de acreditar no sonho. E o Moisés continua lá, a me sorrir como que
na esperança de que um dia eu realmente sente ao seu lado no jardim.
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