quinta-feira, 26 de julho de 2012

Sujeito Indefinido


E se tudo que você passou anos procurando você encontrar um dia, de repente, em uma única pessoa? Luiza chegou bagunçando de cara a vida de Heitor. Ele tinha as suas certezas, não dependia de ninguém, não perguntava se era melhor colocar o casaco preto ou o cinza, não precisava nem de opinião.
Heitor tinha acabado de sair de um relacionamento de sete anos e seu único objetivo agora, era conhecer o maior número de pessoas sem se envolver com ninguém. Sentiu vontade de dançar com quem ele não conhecia embalado pelas músicas que não costumava ouvir. Um show de pagode. Colocou o casaco cinza, o tênis que estava guardado porque não gostava de usar e entrou naquele lugar onde jamais havia pensado em frequentar. Dançou com três mulheres, mas parou antes que terminassem as músicas, não estava no mesmo compasso de nenhuma delas. Com a segunda ele bem que tentou, não acertaram o tal do compasso, mas estavam no mesmo ritmo. Uma pisada no pé. Não deu para continuar a dança. Viu, de longe, a menina que parecia saber todos os passos e continuou ali, da mesma distância, pois tinha certeza que não conseguiria acompanhá-la. Luiza notou o seu olhar e sem perguntar entrou na vida de Heitor. Ele não teve tempo de lembrar do seu objetivo inicial e alguns dias depois não quis mesmo lembrar.
Os dois foram se conhecendo aos poucos e cada dia ela mostrava que não era aquela com quem ele sempre sonhou. Ela o fazia sem perceber e ele, sem querer, aceitava cada uma daquelas diferenças. Comeram sushi, mas só depois descobriram que nenhum dos dois gostava daquela comida sem gosto. Heitor não achava nenhuma mulher bonita sem maquiagem. Ela tinha um olhar que dispensava a sombra e a máscara. Luiza não gostava de nenhum sapato masculino. Nele caia bem. Ele começou a ouvir pagode e ela a decidir que casaco ele usaria. Ele fazia contabilidade e ela oficina de criação literária, um mês depois, Luiza fazia algumas contas para Heitor e ele dava opinião nos textos sempre mal escritos por ela. Tudo o que ele buscava em alguém passou a ser o que encontrava nela.
          Foi então que ela disse que conheceu um sujeito que, com certeza, daria a ela toda a felicidade que desejou. Heitor decidiu se afastar para que Luiza pudesse viver o que sempre sonhou. Não deu chance para ela mostrar que, com artigo definido ou indefinido, o sujeito era sempre ele.

A Métrica do Tempo


Eu não sei das métricas nem das rimas
Devo, então, escrever sobre o amor.
Não. Não há espaço para ele
Não há tempo.
Há filhos sem berço
Embalados pelo frio nas lixeiras.
Só quem não tem é capaz de sentir,
Estéreis choram.
Ninguém olha para o lado
Ninguém enxerga.
Não damos mais esmola,
Não sabemos mais quem precisa
Ou quem ocupa um lugar alheio no sinal.
Aliás, não damos bom dia,
Não há tempo.
Avise os desavisados
Que vistam a camisa do seu time em vista da vitória!
Desinformados ou distraídos,
Torçam por vocês
Para que não virem os porcos do Haiti.
Mas que seja agora!
Não há mais tempo.
2010

Marcas


Naquela noite, a tristeza o manteve acordado. Ver sua esposa com os olhos cerrados, sem responder aos seus carinhos. Era inaceitável que a vida tivesse acabado primeiro para ela. A morte de Rosa Maria, há dois meses, foi o que tornou o quarto a nova morada de Ernesto Carmesin. Agora o velho sai de lá uma vez por semana para tomar um banho que leva sempre muito tempo. As refeições não fazem falta. Come, no quarto, porque a filha insiste. Durante a vida inteira, o número de visitas a qualquer médico deve ter totalizado cinco, no máximo. Agora mesmo é que ele não aceitava visita de nenhum especialista. A morte de Rosa Maria, que noite triste foi aquela. Aliás, que dias tristes têm sido todos sem a sua companhia.
Olhou-se no espelho e teve a impressão de que o tempo havia passado rápido demais. Cada uma daquelas marcas em seu rosto, parecia marcar também um momento de sua vida. E as lembranças vieram-lhe como uma enxurrada. O último natal reuniu todos os filhos na mesa grande da sala, além dos doze netos e do bisneto. Recém chegado, filho da neta mais velha, era para Pedro que se voltavam as atenções na noite do natal de 1997. A Vó Ninha, como era carinhosamente chamada Rosa Maria por toda a família, nunca comprava presentes, passava o ano inteiro confeccionando o que iria para o saco do Papai Noel que era pendurado na lareira. Para cada um era feito um presente diferente, os únicos iguais eram os das netas gêmeas. Uma boneca de pano amarela para Julia e uma vermelha para Joana. Ernesto tinha sempre uma criança no colo. O colo do Vô Neneco era o melhor de todos, dizia Luíza que mesmo com dezessete anos voltava a ser criança com os carinhos do avô. E essa foi a última vez que viu toda a família reunida.
Já havia passado tanto tempo da morte de Antônio, que Ernesto esqueceu que faltou alguém naquela mesa. Não sofreu como Rosa Maria no dia em que recebeu a notícia do atropelamento de seu filho de apenas doze anos. Lembrou-se disso subitamente e agora sim, veio-lhe uma sensação de perda. Sentiu-se sozinho e culpado por não ter chorado pela morte do filho. A nitidez com que revivia aquele momento era impressionante. Abraçou a esposa que chorava desesperadamente. Ajudou-a a ir até o quarto e colocou-a na cama de onde não conseguiu levantar-se durante muitas horas. Ernesto contou aos filhos e o desespero da mãe viu-se também nos olhos daquelas crianças. Agora já era tarde para sofrer por isso e, já era tarde para se arrepender pelas faltas que cometeu antes do enfarte que sofreu um ano antes do nascimento da sua primeira neta. Foi o medo da morte que mudou sua vida. Não era antes um homem ruim, mas sua severidade criou nos filhos um receio que os mantinha sempre um pouco distantes do pai.
Talvez seu maior erro tenha sido forçar Rosa Maria a casar-se com ele. Brigaram incessantemente durante um ano. O nascimento do primeiro filho fez com que a mãe se calasse diante às grosserias do marido. Além de dedicar o seu tempo, depositava também toda a sua preocupação nos cuidados com Antônio. O convívio entre os dois tornou-se tranquilo, mas estava longe de ser uma relação de afeto. Ainda agora, diante do espelho, achava justo ter forçado aquele casamento. Não havia outra mulher que despertasse nele maior interesse. Naquela época, tinha dinheiro para manter uma casa com conforto e, afinal, nas últimas décadas conseguiu dar a ela a dedicação merecida.
Uma súbita dor. Respirou fundo, levou as duas mãos ao peito e fechou os olhos. Lembrou-se da infância e pode ver que a maneira rude com que o pai e a mãe o criaram foi o que o tornou tão reservado. Não abriu mão de nenhuma decisão, não dedicou seu tempo e, por muitos anos, não demonstrou sinal de afeto por ninguém. Na verdade, não sabia como fazê-lo. Atentou que podia ter prejudicado seus filhos com o mesmo erro. Mas não, a mãe deu-lhes tudo o que era necessário. Teve de deitar-se na cama. A convicção de ter podido mudar nos últimos anos amenizou a dor. Precisou fechar os olhos mais uma vez. A respiração está ficando cada vez mais lenta.
2009

Murphy


Chegou em casa mais tarde do que de costume e viu que estava sem as chaves. Lei de Murphy. Todos estavam dormindo. A dor nos rins aumentava cada vez mais. Tocou a campainha duas vezes e nada. Desabou a chuva. Sem bateria no celular, teve que caminhar até um telefone público. A irmã só resmungou um “está aberto”. Entrando, percebeu que aquela dor que sentira era apenas reflexo da forte ligação que tinha com Ana que encontrava-se sentada no chão, ao lado do telefone, com os joelhos juntos ao peito. Sabia exatamente o que ela sentia. Em suas devidas proporções, sempre sabia. Aos gritos acordou os pais, pois a chave do carro não estava no lugar. Não dava tempo de esperar por uma ambulância, a dor era quase insuportável. O pai, apenas pelo fato de saber que não o deixariam mais dormir, carregou Ana até o carro, sem muito cuidado, e dirigiu até o hospital. Vitória segurou a mão da irmã por todo o caminho, sem ouvir choro, nem palavra alguma. Não era necessário. Ela sabia o que Ana sentia.
O sol ainda nem havia aparecido quando deixou o hospital. Já estava a par do estado da irmã: uma cirurgia simples para remover um cálculo renal. Já na frente do escritório onde trabalhava, aconteceu aquela cena típica de um dia de azar. Um ônibus passou em uma poça d’água, sujando de barro sua roupa. Era inacreditável que no outro dia, tudo ainda desse errado. Lei de Murphy, lembrou.
Sua carta de demissão estava pronta em cima da mesa. Sorriu irônica. Pegou-a e sem falar com ninguém, saiu do prédio. Freada brusca. Deitada ali no chão, ao mesmo tempo em que o médico discava para lhe contar da complicação que ocorrera na cirurgia da irmã, Vitória perdeu os sentidos e Ana também.
2009 

Leitura x Cultura


Hipérbato, anástrofe, prolépse, sínquise, assíndeto, anacoluto. É desnecessário que se conheça, em detalhes, a sintaxe para ser um bom leitor. Um texto, independentemente do gênero, não transmite somente compreensão. Mais do que isso, é capaz de despertar sentimento.
Parece que cada vez mais, os textos pobres em conteúdo, são procurados. Os livros mais vendidos, em destaque nas livrarias, os tão conhecidos best-sellers, nem sempre são precários nas suas histórias, mas não é esse o fator que faz com que eles se tornem tão populares. Basta estar na vitrine para se tornar livro de cabeceira, e o seu leitor, instantaneamente, tornar-se culto. 
Por falar nisso, na época em que O Pequeno Príncipe foi indicado como livro de cabeceira por várias misses, será que foi realmente lido? Pode até ser que sim, mas arrisco afirmar que a intertextualidade, tão rica na obra, não foi sequer reparada. Enquanto algumas obras são consideradas boas por serem populares, outras, como essa, tornam-se ruins pelo mesmo motivo, enquanto as leituras deveriam ser escolhidas por quem o faz sem a influência de outras opiniões. Afinal, não é para isso que servem as boas críticas, é o objetivo, apenas, de quem lucra com as vendas dos livros.
              Cultura ou não, o importante é que se leia, mas se é para comprar livros de vitrine, que seja o Harry Potter, que instiga divagações. Entretanto, vale a pena dar uma olhada mais no fundo da loja e começar as compras pelos autores clássicos, sem deixar de colocar na sacola um grande contista.
2009