quinta-feira, 26 de julho de 2012

Marcas


Naquela noite, a tristeza o manteve acordado. Ver sua esposa com os olhos cerrados, sem responder aos seus carinhos. Era inaceitável que a vida tivesse acabado primeiro para ela. A morte de Rosa Maria, há dois meses, foi o que tornou o quarto a nova morada de Ernesto Carmesin. Agora o velho sai de lá uma vez por semana para tomar um banho que leva sempre muito tempo. As refeições não fazem falta. Come, no quarto, porque a filha insiste. Durante a vida inteira, o número de visitas a qualquer médico deve ter totalizado cinco, no máximo. Agora mesmo é que ele não aceitava visita de nenhum especialista. A morte de Rosa Maria, que noite triste foi aquela. Aliás, que dias tristes têm sido todos sem a sua companhia.
Olhou-se no espelho e teve a impressão de que o tempo havia passado rápido demais. Cada uma daquelas marcas em seu rosto, parecia marcar também um momento de sua vida. E as lembranças vieram-lhe como uma enxurrada. O último natal reuniu todos os filhos na mesa grande da sala, além dos doze netos e do bisneto. Recém chegado, filho da neta mais velha, era para Pedro que se voltavam as atenções na noite do natal de 1997. A Vó Ninha, como era carinhosamente chamada Rosa Maria por toda a família, nunca comprava presentes, passava o ano inteiro confeccionando o que iria para o saco do Papai Noel que era pendurado na lareira. Para cada um era feito um presente diferente, os únicos iguais eram os das netas gêmeas. Uma boneca de pano amarela para Julia e uma vermelha para Joana. Ernesto tinha sempre uma criança no colo. O colo do Vô Neneco era o melhor de todos, dizia Luíza que mesmo com dezessete anos voltava a ser criança com os carinhos do avô. E essa foi a última vez que viu toda a família reunida.
Já havia passado tanto tempo da morte de Antônio, que Ernesto esqueceu que faltou alguém naquela mesa. Não sofreu como Rosa Maria no dia em que recebeu a notícia do atropelamento de seu filho de apenas doze anos. Lembrou-se disso subitamente e agora sim, veio-lhe uma sensação de perda. Sentiu-se sozinho e culpado por não ter chorado pela morte do filho. A nitidez com que revivia aquele momento era impressionante. Abraçou a esposa que chorava desesperadamente. Ajudou-a a ir até o quarto e colocou-a na cama de onde não conseguiu levantar-se durante muitas horas. Ernesto contou aos filhos e o desespero da mãe viu-se também nos olhos daquelas crianças. Agora já era tarde para sofrer por isso e, já era tarde para se arrepender pelas faltas que cometeu antes do enfarte que sofreu um ano antes do nascimento da sua primeira neta. Foi o medo da morte que mudou sua vida. Não era antes um homem ruim, mas sua severidade criou nos filhos um receio que os mantinha sempre um pouco distantes do pai.
Talvez seu maior erro tenha sido forçar Rosa Maria a casar-se com ele. Brigaram incessantemente durante um ano. O nascimento do primeiro filho fez com que a mãe se calasse diante às grosserias do marido. Além de dedicar o seu tempo, depositava também toda a sua preocupação nos cuidados com Antônio. O convívio entre os dois tornou-se tranquilo, mas estava longe de ser uma relação de afeto. Ainda agora, diante do espelho, achava justo ter forçado aquele casamento. Não havia outra mulher que despertasse nele maior interesse. Naquela época, tinha dinheiro para manter uma casa com conforto e, afinal, nas últimas décadas conseguiu dar a ela a dedicação merecida.
Uma súbita dor. Respirou fundo, levou as duas mãos ao peito e fechou os olhos. Lembrou-se da infância e pode ver que a maneira rude com que o pai e a mãe o criaram foi o que o tornou tão reservado. Não abriu mão de nenhuma decisão, não dedicou seu tempo e, por muitos anos, não demonstrou sinal de afeto por ninguém. Na verdade, não sabia como fazê-lo. Atentou que podia ter prejudicado seus filhos com o mesmo erro. Mas não, a mãe deu-lhes tudo o que era necessário. Teve de deitar-se na cama. A convicção de ter podido mudar nos últimos anos amenizou a dor. Precisou fechar os olhos mais uma vez. A respiração está ficando cada vez mais lenta.
2009

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